Com o aumento dos lares com cães, surge uma pergunta: será que todos esses animais têm a possibilidade expressar seus comportamentos naturais? Estamos na era do politicamente correto. Não apenas com os humanos, mas com animais também.
“Meu cachorro cheira o traseiro de todos os cachorros e humanos. Morro de vergonha!”, me falaram. “Odeio que meu cachorro lata. Deveria poder cortar as cordas vocais dele”, já ouvi. “E o meu cachorro que destrói toda minha casa?”, disse outro. “Isso não é nada! Paguei fortunas na paisagista, para o meu cachorro comer toda minha horta em três dias” replicaram. “Fui no parque com meu cachorro e veio um cão e rosnou para ele. Muito mal educado!” apontaram. Essas são apenas algumas falas comuns entre os tutores de cães.
Todos os comportamentos citados (cheirar o rabo, latir, roer, comer plantas e rosnar) fazem parte do pool comportamental do animal. Porém, sem ter momento e elementos para exibi-los da forma correta, aparecem os desvios de comportamento e os cães viram vilões.
É muito raro haver um descontentamento, por parte do tutor, por algo que não seja da natureza do cão. Mas quando deixamos o animal preso em nossas casas, sem nenhum tipo de atividade ou foco, ele está disponível para utilizar todo aquele corpinho para extravasar seus comportamentos básicos (principalmente no seu sapato novo!).
Ontem, eu fiquei super feliz da minha cachorra, Aurora, ter roubado um pedaço de pepino caído no chão. Não só ela pegou, como levou para sua caminha e tentou comer. Mesmo após me ver, continuou tentando roer o pepino (com seus apenas 8 dentes). Isso mostra o quão ela está mais a vontade, sem medo, tentando novos comportamentos. Para outra pessoa, poderia ser algo inconcebível, uma afronta ou má educação. Mas para mim (sei que sou fora da curva) foi algo incrível, com comunicações claras, de muita alegria.
Mas essa humanização não acontece apenas com os tutores. Muitas pesquisas científicas buscam a compreensão do comportamento do cão (e de outros animais) por um viés antropocêntrico.
Hoje mesmo, discuti, com colegas, sobre um artigo sobre o gesto de apontar um objeto com o dedo. Não é algo que faça parte do comportamento dos cães. Eles não levantam a pata, esticam em direção a um local, para indicar o que desejam a outro animal. O gesto de apontar, em cães, é feito com olhos, focinho ou mesmo com o corpo. Por que, então, o experimento não buscou entender a comunicação de apontar pela ótica canina, mas pela humana?
É pelo mesmo motivo, que muitos cães estão desenvolvendo problemas comportamentais: eles não são vistos como cães, mas como mini-humanos peludos.
Vai dizer que você nunca disse, ou ouviu alguém dizer, que seu cão estava com ciúmes?! Ou que o cachorro comeu a horta por birra? “Ele sabia que era errado e mesmo assim foi lá e comeu!” dizem. Isso porque interpretamos os comportamentos dos cães (e outros animais também) pela ótica humana. Não paramos para pensar o que ele realmente quer dizer com aquilo, ou o que significa para ele.
Os cães precisam muito mais do que uma cama confortável, boa alimentação e carinho para viverem. Eles precisam ser compreendidos. Não pela sua visão, mas pela dele.
Você não se abaixa para conversar com uma criança pequena, para entrar no campo visual e perceptivo dela? Por que não fazer o mesmo com cães?
Por isso, repare na boca dele, no movimento do rabo, nas orelhas, no corpo, nos pelos. Busque mais informações sobre como os cães se comunicam (não é com latidos, apenas). Entenda de fato o que ele quer te dizer. Ele não precisa falar, ele tem todos os outros sentidos. Só precisa que você esteja atento para “ouvir”.
Se seu cão comer a sua horta, pense que talvez ele precise de grama para comer. Ofereça um trigo germinado para ele. Se ele está cavando o seu jardim, talvez ele precise gastar mais energia e passear mais no parque. Se ele está latindo demais, talvez ele esteja precisando de mais atividade cognitiva, para focar sua atenção. Dê desafios para ele, enriqueça sua rotina com coisas interessantes. Com foco, os comportamentos naturais poderão ser expressos de uma forma que agrade a todos, não apenas cão ou humano.
Somente compreendendo a fundo o cão, poderemos ser melhores tutores, oferecendo o que eles realmente necessitam, para garantir seu bem-estar. Eles estão na nossa casa, dormindo na nossa cama, por uma decisão humana, não canina.